quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Indelével



Nada e tudo em mim anseia
E sem saber, apenas sinto a teia
Que ao redor me contorna
Simples corpo frio em água morna

Estando negligentemente amargurada
E da dor, inconstantemente, curada
Respiro o cheiro indelével da vida
Mato molhado pela chuva fria e sofrida

Na remota solidão desejada
De uma ilha a ermo e ensejada
Ocupo-me em pescar num relance ou num ardil
O amor ora sereno ora demasiado vil

Espalhando-se ao sabor do mar errante
Vago-mundo, mais uma nômade delirante
Berço de sonhos de um criador contumaz
Contrapondo-se entre ser pusilânime e audaz

A hora, inexata, se faz humana
O vagar tensiona a existência profana
Na descoberta da desimportância da captura
No lacônico piscar de olhos com candura

Melancolia e saudade...
Morrer um pouco e sempre é incrivelmente humano

*Desconheço o Autor

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Eu Te Amo


Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

Tom Jobim / Chico Buarque


segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Ausência

Eu deixarei que morra em mim
o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão
a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença
é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto
existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.

Não te quero ter porque
em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar
uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne
como nódoa do passado.

Eu deixarei... tu irás
e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás
que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite.

Porque eu encostei minha face
na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram
os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.

Eu ficarei só
como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém
porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar,
do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente,
a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius De Moraes

domingo, 30 de setembro de 2007

Metade


Que a força do medo
que tenho não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
pois metade de mim é o que eu grito
a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja
pra sempre amada mesmo que distante
pois metade de mim é partida
a outra metade é saudade.

Quer as palavras que falo
não sejam ouvidas como prece
nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimentos
pois metade de mim é o que ouço
a outra metade é o que calo.

Que a minha vontade de ir embora
se transforme na calma e paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
a outra metade um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita meu rosto
num doce sorriso que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
E que o seu silêncio me fale cada vez mais
pois metade de mim é abrigo
a outra metade é cansaço.

Que a arte me aponte uma resposta
mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Pois metade de mim é platéia
a outra metade é canção.

Que a minha loucura seja perdoada
pois metade de mim é amor
e a outra metade também

(Oswaldo Montenegro)